Em memória de Nery da Silva

O texto a seguir é uma homenagem póstuma a Nery da Silva e faz parte de um (audacioso) projeto de escrita do autor, onde serão tratados temas relacionados ao luto, à vida, à morte e às memórias. O material completo ainda não se encontra publicado, mas fiquem à vontade para cobrar do autor a sua continuação.

S. M. Ocriciano

10/21/2025

Acredito que as mais difíceis despedidas são aquelas que não nos dão aviso prévio, que não anunciam sua chegada, pois estas são de laboriosa aceitação. Contudo, aqueles que anunciam previamente sua partida nos colocam em um estado de luto latente, onde não se pode ainda declarar o enlutamento, mas já se sabe que a chegada deste momento é iminente.

Em 21 de julho de 2024, perdi meu avô, Nery da Silva, por complicações trazidas através da degradação do corpo pelo tempo. Aos 87 anos, Nery sucumbiu aos maus tratos da velhice, mas não partiu sem antes deixar, naqueles que ficaram, ricas lembranças de que ele esteve aqui. Assim, antes de falar da morte de Nery, preciso ressaltar sua vida.

Nascido em Piumhi (MG), Nery mudou-se muito jovem para Anápolis (GO) onde criou raízes, cresceu e formou sua própria família. Foi um homem simples, de hábitos modestos e muitos talentos manuais. Fazia tudo por conta própria, desde a confecção dos seus banquinhos de madeira, aos reparos mecânicos no seu Fusca amarelo-queimado, carinhosamente apelidado de “Chebinha”.

São incontáveis as lembranças que carrego em mim associadas ao meu avô, mas nessa lista estão as vezes em que ele, com todo seu capricho e destreza, levava a mim e ao meu irmão até um amontoado de canas-de-açúcar nos fundos do quintal. Ali ele nos ensinava a escolher a melhor cana para o consumo, ensinava a cortá-la e a descascá-la. Ensinava, mas eu nunca aprendi. De qualquer forma, a impressão que eu tinha olhando para o meu avô era de que ali havia um regente conduzindo com maestria cada um dos elementos ao seu redor, compondo sua modesta harmonia de contato com a terra e com as belezas simples da vida. Esta era uma impressão recorrente; sempre o vi como um homem muito sereno, tranquilo, mas que sabia extrair o que há de melhor na vida.

Talvez por sua criação rígida e pelos infortúnios da vida, ele tenha se visto obrigado a aprender as melhores formas de degustar a vida com simplicidade. Era assim enquanto eu o assistia batendo à mão sua própria manteiga de leite, ou construindo seu próprio estilingue para derrubar mangas do pé. Também era assim o seu ritmo quando jogávamos Damas ou quando ele, ao final de uma festa de família, dedilhava em seu violão uma belíssima canção de amor. Se fechar os olhos e me concentrar, consigo ouvir o som das suas unhas se arrastando pelas cordas do instrumento.

Ainda sobre ouvir, hoje guardo com imenso apreço o seu radinho azul de pilhas, através do qual ele se conectava com o mundo globalizado durante seus afazeres. Nunca teve WhatsApp, Instagram e nem similares, mas também nunca esqueceu o aniversário de um neto. Quando o dia do meu chegava, eu já me colocava à espera de sua ligação, desejando “muitos anos de vida, que Deus te abençoe, que tenha muita saúde e muito juízo”. Sempre.

Agora que ele se foi, é curioso perceber o caráter perpétuo das lembranças que ficaram e, sobretudo, das atitudes que ele tomava durante a vida. Talvez seja a morte que tenha alongado ao infinito cada uma de suas ações, talvez seja a velhice, mas acontece que hoje, tudo aquilo que alguma vez se repetiu parece se repetir por toda a eternidade.

Quem sabe seja esta a vantagem da tão temida velhice: fazemos tanto as mesmas coisas por tanto tempo e com tanta excelência que tais coisas se fundem à percepção que os outros têm de nós e tornamo-nos essa amálgama perpétua de memórias.

Com carinho,
S. M. Ocriciano.

P.S.: sua música preferida, hoje, ressoa em nossos corações como um saudoso (e muito grato) lembrete de tudo que Nery representou para seus entes queridos. A imagem de capa deste artigo carrega um trecho da letra. Aos interessados, a música é "Naquela Mesa", de Nelson Gonçalves. Hoje, é impossível que eu aprecie essa música sem verter algumas lágrimas quando me lembro que "a saudade dele 'tá doendo em mim"

Acredito que as mais difíceis despedidas são aquelas que não nos dão aviso prévio, que não anunciam sua chegada, pois estas são de laboriosa aceitação. Contudo, aqueles que anunciam previamente sua partida nos colocam em um estado de luto latente, onde não se pode ainda declarar o enlutamento, mas já se sabe que a chegada deste momento é iminente.

Em 21 de julho de 2024, perdi meu avô, Nery da Silva, por complicações trazidas através da degradação do corpo pelo tempo. Aos 87 anos, Nery sucumbiu aos maus tratos da velhice, mas não partiu sem antes deixar, naqueles que ficaram, ricas lembranças de que ele esteve aqui. Assim, antes de falar da morte de Nery, preciso ressaltar sua vida.

Nascido em Piumhi (MG), Nery mudou-se muito jovem para Anápolis (GO) onde criou raízes, cresceu e formou sua própria família. Foi um homem simples, de hábitos modestos e muitos talentos manuais. Fazia tudo por conta própria, desde a confecção dos seus banquinhos de madeira, aos reparos mecânicos no seu Fusca amarelo-queimado, carinhosamente apelidado de “Chebinha”.

São incontáveis as lembranças que carrego em mim associadas ao meu avô, mas nessa lista estão as vezes em que ele, com todo seu capricho e destreza, levava a mim e ao meu irmão até um amontoado de canas-de-açúcar nos fundos do quintal. Ali ele nos ensinava a escolher a melhor cana para o consumo, ensinava a cortá-la e a descascá-la. Ensinava, mas eu nunca aprendi. De qualquer forma, a impressão que eu tinha olhando para o meu avô era de que ali havia um regente conduzindo com maestria cada um dos elementos ao seu redor, compondo sua modesta harmonia de contato com a terra e com as belezas simples da vida. Esta era uma impressão recorrente; sempre o vi como um homem muito sereno, tranquilo, mas que sabia extrair o que há de melhor na vida.

Talvez por sua criação rígida e pelos infortúnios da vida, ele tenha se visto obrigado a aprender as melhores formas de degustar a vida com simplicidade. Era assim enquanto eu o assistia batendo à mão sua própria manteiga de leite, ou construindo seu próprio estilingue para derrubar mangas do pé. Também era assim o seu ritmo quando jogávamos Damas ou quando ele, ao final de uma festa de família, dedilhava em seu violão uma belíssima canção de amor. Se fechar os olhos e me concentrar, consigo ouvir o som das suas unhas se arrastando pelas cordas do instrumento.

Ainda sobre ouvir, hoje guardo com imenso apreço o seu radinho azul de pilhas, através do qual ele se conectava com o mundo globalizado durante seus afazeres. Nunca teve WhatsApp, Instagram e nem similares, mas também nunca esqueceu o aniversário de um neto. Quando o dia do meu chegava, eu já me colocava à espera de sua ligação, desejando “muitos anos de vida, que Deus te abençoe, que tenha muita saúde e muito juízo”. Sempre.

Agora que ele se foi, é curioso perceber o caráter perpétuo das lembranças que ficaram e, sobretudo, das atitudes que ele tomava durante a vida. Talvez seja a morte que tenha alongado ao infinito cada uma de suas ações, talvez seja a velhice, mas acontece que hoje, tudo aquilo que alguma vez se repetiu parece se repetir por toda a eternidade.

Quem sabe seja esta a vantagem da tão temida velhice: fazemos tanto as mesmas coisas por tanto tempo e com tanta excelência que tais coisas se fundem à percepção que os outros têm de nós e tornamo-nos essa amálgama perpétua de memórias.

Com carinho,
S. M. Ocriciano.

P.S.: sua música preferida, hoje, ressoa em nossos corações como um saudoso (e muito grato) lembrete de tudo que Nery representou para seus entes queridos. A imagem de capa deste artigo carrega um trecho da letra. Aos interessados, a música é "Naquela Mesa", de Nelson Gonçalves. Hoje, é impossível que eu aprecie essa música sem verter algumas lágrimas quando me lembro que "a saudade dele 'tá doendo em mim".